sábado, 5 de maio de 2012

"Se Meu Fusca Falasse".


Série Laércio Becker.
Não só de futebol vive um homem. O homem também vive outra paixão: o automóvel. O escritor Laércio Becker produziu uma obra dedicada ao fenômeno do mundo automobilístico: o Fusca, ou oficialmente no Brasil até 1983, Volkswagen Sedan. Inicio hoje mais uma Série Laércio Becker, publicando em duas partes, o título “Os Nomes e Apelidos do Fusca”. Boa leitura!


1. No Brasil

1.1. Fusca e variações

Durante muitos anos, desde sua chegada ao Brasil, o nome original era Volkswagen Sedan. Na época, fazia sentido, pois o conceito de sedan era mais amplo que hoje: compreendida qualquer carro de carroceria fechada e não conversível. Depois, o conceito mudou. Atualmente, é considerado sedan o carro de três volumes e quatro portas, p.ex., o VW 1600, o popular “Zé do Caixão” ou “Fusca 4 portas”.

Mas o povo lusófono tinha dificuldade de pronunciar corretamente “Volkswagen” (“Volks” = do povo; “wagen” = carro). O primeiro passo foi a apócope, abreviando para “Volks” – lembrando que o “v”, em alemão, é uma consoante fricativa labial surda, que em português tem som de “f”, ou seja, pronuncia-se “folks”. O passo seguinte foi a adaptação fonológica ao português, que gerou corruptelas: no Rio Grande do Sul, “Fuca”; no Paraná, “Fuque” e “Fuquinha”; no resto do país, “Fusca” e “Fusquinha”.

Segundo Fábio Kataoka e Portuga Tavares, o apelido “Fusca” foi uma criação carioca. É possível. Como já dissemos em nosso artigo “A gramática dos nomes de clubes brasileiros de futebol”, fluminenses e paulistas já deram apelidos carinhosos a clubes de seus estados com sufixo nominal “-usca”: Campusca e Cantusca no Rio, Norusca em São Paulo. Ou seja, é bem provável que o apelido “Fusca” tenha sido criado num desses dois estados e depois acabou se espalhando para o resto do país.

Essa origem carioca ou paulista também pode explicar o grande mistério da inversão da posição do “s”, de depois do som “k” para antes dele – em outras palavras, por que o modelo não se chama “Fucsa”, já que teve origem em “Folcs”. Como vimos no já citado artigo sobre os clubes de futebol, há um bom grau de incerteza na definição do sentido que o sufixo nominal “-usca” (e sua variação “-uca”, como em “meiúca” e “Fuca”) atribui às palavras. Vejamos:

a)      Às vezes, ele é considerado um diminutivo, p.ex., em galrusca (tipo de cabra pequena) e pardusca (um pouco parda). Esse sentido pode ser aplicado ao Fusca, um veículo pequeno.

b)     Outras vezes, nas palavras de Luiz Cesar Saraiva Feijó, ele é “repleto de afetividade”, p.ex., quando uma personagem de Joaquim Manuel de Macedo diz que sua avó “é a velha mais patusca do Rio de Janeiro”. Também é aplicável ao Fusca, um carro que costuma despertar esse tipo de sentimento e afetividade.

c)      Outras ainda, ainda na lição do Prof. Feijó, ele traduz uma certa “malícia e uma pitada de deboche”, quando assume, na opinião de Luiz Roncari, um “tom rebaixante”. P.ex., quando Nelson Rodrigues descreve uma grã-fina caricata como “realmente gorda e realmente patusca como as viúvas machadianas”. Também aplicável ao Fusca, pelos que desprezam o carro.

Ou seja, é possível que a inversão dos sons “s” e “k” tenha decorrido da utilização desse sufixo nominal “-usca”, com esse triplo sentido, tão perfeitamente aplicável a esse automóvel, na justa medida em que desperta esses três sentimentos contraditórios evocados pelo sufixo, que vão do desprezo à admiração.

Contudo, Kataoka e Tavares defendem que a evolução de “Volkswagen” para “Fusca” foi um pouco diferente. Primeiro teria ocorrido a corruptela, com a perda do “l”, soando “foxvaguen” – como em “fox-trot”, tipo de dança que existia desde a década de 1910. Depois é que teria ocorrido a redução (por apócope) para “fox”, a partir da qual teriam surgido “Fusca”, “Fuca”, “Fuque”, “Fuquinha” e “Fusquinha”. É claro que é uma linha perfeitamente defensável mas, particularmente, prefiro acreditar que foi a evolução acima indicada (primeiro a apócope, depois a corruptela) porque, se a primeira tendência da linguagem coloquial é reduzir a palavra, a primeira tarefa a cumprir, aqui, seria cortar dois terços das sílabas. Só depois é que se parte para um trabalho de “ourivesaria” vernacular, lapidando a sílaba restante, até se dar ao luxo de acrescentar novos fonemas (paragoge), para conferir à palavra maior expressividade, com uma sonoridade mais agradável ou mais forte, chamativa.

Outra possibilidade, lembrada por Ricardo Caruso, é que “Fusca” seja uma onomatopéia a partir do característico zumbido do motor, o famoso assobio do escapamento duplo. Sim, é possível. Mas creio que é mais provável que essa plasticidade fônica apenas reafirmou e reforçou o uso de um apelido cuja origem foi acima descrita.

Seja qual for a origem desse apelido, fato é que, a partir do final dos anos 60, ganhou bastante popularidade. Mas somente em 1983 a montadora finalmente adotou oficialmente o nome “Fusca”.

Importa lembrar que “fusca” é palavra que, independentemente do carro, já existia no idioma português, em três classes de palavras: adjetivo, verbo e substantivo.

a)      Na condição de adjetivo, “fusca” é o feminino de fusco, do latim fuscus, que significa: escuro, pardo, trigueiro – p.ex., em Diogo Bernardes: “antes que a noite fusca a vista estreite” (Égloga I). Daí que, segundo Firmino Costa, gado fusco é o de pelagem escura – p.ex., em Guimarães Rosa, que fala de bois “pretos, fuscos, retintos”. Em sentido figurado: melancólico, triste, sombrio, sinistro, velado (uma voz fusca é cavernosa, roufenha). Outro sentido do adjetivo fusco é o de “fosco”, que significa: escuro, sem brilho, embaciado (p.ex., em Coelho Neto: “entre o fusco lampejo dos bronzes e o brilho esbatido dos móveis, sombras que se moviam em círculos”) – em sentido figurado: covarde, fraco; alterado, mudado, perturbado. Há ainda o adjetivo “fuscalvo”, que significa claro-escuro (fusco + alvo). Há também o adjetivo “fuscoito”, já em desuso, que significa: um tanto fusco; em sentido figurado: áspero, desabrido, agreste (alguém pensou noutra coisa?).

b)     Na condição de verbo, “fusca” é a conjugação do verbo fuscar, no presente do indicativo, terceira pessoa do singular: ele fusca. Do latim fuscare, “fuscar” significa: escurecer, anoitecer. Também usado como sinônimo de “foscar”, que significa tornar fosco – ver significados deste adjetivo na letra “a”, acima – (p.ex., é possível dizer que, em 1974, a VW fuscou o painel do Fusca 1500); e “ofuscar”, que significa turvar a vista (p.ex., alguém poderia dizer que o farol Tremendão ofusca mais que o olho-de-boi), deslumbrar; impedir de ver, obscurecer, ocultar, esconder, encobrir; em sentido figurado: desprestigiar, desvirtuar, empanar (p.ex., em Joaquim Manuel de Macedo: “ninguém conclua daqui que por ofuscada perco o amor que tinha ao astro que me ofuscou”) – como verbo pronominal, ofuscar-se: deslumbrar-se; apagar-se, perder o brilho, o valor, o prestígio (p.ex., eu diria que, na segunda série de 1970, com perda do brilho dos cromados, o Fusca 1300 ofuscou-se).

c)      Na condição de substantivo comum feminino, “fusca” é uma espécie de pato selvagem de plumagem negra ou parda, i.e., de peito, asas e lombo escuros. Na condição de gíria, fusca significa a justiça. Em Cabo Verde, fusca é bebedeira, embriaguez. Já o substantivo feminino “fusquidão” significa qualidade do que é fusco, escuridão – p.ex., em Aquilino Ribeiro: “de rota batida engolfou-se na fusquidão da terra” (O servo de Deus) e “de envolta com a fusquidão do céu” (S. Banaboião). Há ainda a locução masculina “lusco-fusco” (não confundir com “lesco-lesco”), que signfica: crepúsculo, logo depois do ocaso. No Rio Grande do Sul, diz-se “fusco-fusco” (p.ex., no conto Contrabandista, de Simões Lopes Neto: “Era já fusco-fusco. Pegaram a acender as luzes”); em Cabo Verde, “fuscafusca”; e Francisco Azevedo menciona a variação “fusque-fusque”.

d)     Na condição de substantivo próprio, Fusco é sobrenome – p.ex., do escritor brasileiro Rosário Fusco – enquanto Fusca é prenome. P.ex., da Santa Fusca, também chamada de Santa Jusca ou Fosca (assim como a protagonista da ópera Fosca, de Carlos Gomes), virgem mártir católica celebrada em 13 de fevereiro. No séc. III, durante a perseguição do Imperador Décio aos cristãos, Fusca era uma jovem de Ravena, de 21 anos, que queria converter-se ao cristianismo. Juntamente com sua tia e ama-seca Maura (depois também canonizada), foi batizada pelo sacerdote Hermoloro. Seu pai, quando soube, tentou obrigá-la a renunciar à nova crença. Após fracassar, denunciou ambas à autoridade local, que mandou prendê-las. Lá chegando, os guardas não cumpriram a ordem porque viram um anjo ao lado da jovem. Mas elas compareceram voluntariamente ao tribunal, reafirmaram a fé em Cristo e, por isso, foram cruelmente torturadas e executadas. Suas relíquias encontram-se guardadas na Igreja de Santo Estêvão, em Bolonha. (A propósito, o Fusca já tem padroeira?)

Se o escritor Rosário Fusco fosse devoto de Santa Fusca e tivesse uma filha, poderia batizá-la de Fusca Fusco. Se ela tivesse um Fusca escuro, poderia chamá-lo de Fusca fusco. Se ela quisesse tirar o brilho da plumagem de uma fusca (o pato), ela poderia tentar fuscá-lo. Preferencialmente no crepúsculo, que ela, se fosse gaúcha, chamaria de fusco-fusco. E faria isso em seu carro, é claro. Em resumo: num Fusca fusco, Fusca Fusco fusca a fusca no fusco-fusco. Um título enigmático para este microconto poderia ser “A justiça velada” ou, em fusquês, “A fusca fusca”.

Brincadeiras à parte, o que se nota claramente é que a palavra “fusca”, no latim e no português, tem um significado muito ligado ao escuro, à perda de brilho e sentidos figurados decorrentes (tristeza, melancolia etc.) que não têm nada a ver com o espírito alegre do Fusca, confirmado pelos inúmeros nomes e apelidos adotados nos outros países (cf. veremos no item 2, abaixo). Exceção para o substantivo feminino “fosca”, que significa disfarce, jeito, aparência ilusiva; momice, trejeito, brinquedo – mais usado no diminutivo, “fosquinha”, que é a ação de aparecer e desaparecer repentinamente; sombra; gesto, festa, careta; dissimulação, engano; gracinha, pique, troça; indireta miúda, provocação à inveja. Outra exceção para o já citado verbo “ofuscar”, quando ele pressupõe a existência de um brilho maior (p.ex., em Joaquim Manuel de Macedo: “é fato que nenhuma de nós gosta de ser ofuscada com o esplendor de outra. Já basta de brilhar, D. Clementina”).

Sendo assim, o nome Fusca, dado no Brasil ao Volkswagen Sedan, certamente não tem nada a ver com o campo semântico da palavra “fusco” e suas variações. Vale dizer, não tem origem etimológica nas raízes latinas do idioma português, mas eminentemente fonética, a partir da pronúncia alterada da palavra alemã “Volks”.

1.2. Outros apelidos 
        
Além de “Fusca”, “Fuca”, “Fuque”, “Fuquinha” e “Fusquinha”, alguns modelos específicos do Volkswagen Sedan tiveram apelidos próprios, só deles. São os seguintes:

a) Cornowagen – Fusca com teto-solar opcional, disponibilizado em 1965. Dizia-se que era o veículo predileto do marido traído, que poderia aí acomodar seu par de chifres. Há quem diga que o apelido maldoso partiu da concorrência. Numa sociedade em que as pessoas se preocupam demais com o que os outros pensam, foi fatal.

b) Pé-de-boi – modelo bastante simplificado, “espartano”, de 1965 a 1966; o apelido foi propagado pela própria montadora, com o intuito de dizer que o carro simples era adequado à vida rural.

c) Modelinho – modelo com maior área envidraçada no vigia traseiro, lançado em 1966; segundo O grande livro do Fusca, provável corruptela de model-year, “ano-modelo” – o ano de fabricação de um veículo, que não necessariamente corresponde ao ano civil (na boa síntese de Fabio Steinbruch).

d) Tigrão – primeiro modelo 1300, em 1967; jogada de marketing da montadora, provavelmente inspirada numa propaganda da Esso; a idéia era distinguir do modelo 1200.

e) Fuscão – 1500, de 1970 a 1975; apelido que servia para distinguir do modelo 1300.

f) Super-Fuscão – 1600-S, de 1974 a 1975; apelido que servia para distinguir dos modelos 1300 e 1500. Em 1976, com o lançamento do modelo 1600, foram aposentados esses superlativos “Fuscão” e “Super-Fuscão”.

g) Bizorrão – modelo 1600-S, de 1974 a 1975; corruptela de besourão, provavelmente reforçada por onomatopéia (é o que dá a entender a propaganda da época, em que se lia o seguinte: “Bizz-Bizz-Bizzzuuuummm! Chegou o Bizorrão!”).

h) Fafá – a partir de 1979, devido o formato das lanternas traseiras lembrar os generosos seios da famosa cantora paraense Maria de Fátima Palha de Figueiredo, a Fafá de Belém. Outros países, que não tinham o privilégio de conhecê-la, chamavam de “pata-de-elefante”, pelo formato da pegada do paquiderme. Falando em patas, as lanternas anteriores à Fafá eram conhecidas, no Brasil, como “pata-de-cavalo”, também pelo formato.

i) Itamar – de 1993 a 1996, porque foi seu lançamento foi fomentado por Itamar Franco, Presidente da República (que não comprou um).

j) Joaninha – apelido das rádio-patrulhas, em São Paulo, provavelmente pela combinação das cores da bandeira paulista com o formato da viatura. Como veremos a seguir, na França e na Itália, o Fusca também é conhecido como “joaninha”. Isso até poderia levantar a hipótese de o apelido das viaturas paulistas ter surgido por influência da comunidade italiana. Mas é pouco provável, já que, nesse caso, o apelido teria sido Maggiolino (como veremos no item 2, a seguir), ou alguma corruptela disso.

Laércio Becker.

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